Os Bruzundangas, Afonso
Henriques de Lima Barreto (1881- 1922), coletânea de crônicas publicada
postumamente em 1923, obra de domínio público.
Este livro está disponível em
vários formatos de arquivo para baixar legalmente no site www.dominiopublico.gov.br, mas
nenhum desses formatos proporciounou-me uma leitura confortável num e-reader,
de modo que resolvi gerar uma versão em ePub e disponibilizar também
gratuitamente na minha biblioteca virtual, o Quintextos. O texto do arquivo
original não sofreu alterações, apenas corrigi erros, claramente, de digitação.
O que mais me chama a atenção nestes textos de Lima Barreto é a sua linguagem aguçada e refinada ironia, a arte de dar tapas com penas de ganso, se me permitem a pobre comparação. As crônicas desta coletânea
foram produzidas nas primeiras décadas do século XX e, inacreditavelmente,
seguem atuais. Li várias vezes o livro completo, dado o meu trabalho de edição. E li com prazer. Nelas encontramos críticas ao racismo, ao sistema educacional da época, aos
doutores de canudo, à classe política e seu comportamento criminoso de só
pensar em si e nos amigos, a prática do nepotismo (empregar parentes em órgãos
públicos), a venda das riquezas do país e a má utilização dos bens e dinheiro
públicos, dentre outras questões. Encontramos também crítica a mentalidades, ao comportamento dos ditos 'literatos’ da época, enfim: quase tudo que há anos impede o progresso verdadeiro do país.
A coletânea começa com um
capítulo muito divertido sobre a literatura do país fictício: a Bruzundanga,
que muitas semelhanças tem com o Brasil, mais antigo e o atual. Ao que parece, a crítica foi
direcionada aos ditos parnasianos, ainda mais considerando a época em que foi
feita, mencionada em vários livros como pré-modernismo e modernismo (em 1922
deu-se a famosa Semana de Arte Moderna). Segue com uma crítica a comportamentos de
políticos, aos que se consideram nobres ou elite e como essa ‘nobreza’ passa a
existir, da noite para o dia; críticas ao comportamento de ditos representantes e funcionários públicos e às
formas como são conduzidos os relacionamentos com estrangeiros e seus países.
Fala dos desmandos e absurdos no trato com as riquezas da terra e das
oligarquias, sobretudo a do café e as falcatruas do mercado, da falsidade
do ensino e dos métodos de obtenção de
títulos e diplomas (se naquela época já era assim, imagine agora!), das
regalias dos diplomatas e do endividamento do país. O capítulo VIII, que trata
da Constituição da Bruzundanga é, sem dúvidas, um dos melhores trechos. Muito
importante para os brasileiros seria, quem sabe, entender o conceito de ‘pertencer
à situação’ ou de recorrer à Chicana, como a Justiça se chama na Bruzundanga.
Daí seguimos com descrições do comportamento e requisitos para ser presidente da república ou
mandachuva, nos termos de lá, com capítulos sobre a força armada, um certo
ministro, sobre os heróis desta terra brava, a sociedade (que pariu e mantém a
Bruzundanga do jeito que ela é), as eleições e o comportamento dos médicos e secretários de
políticos (indispensáveis!). Os últimos dois capítulos trazem desmandos de
poder tanto de províncias quanto de seus governantes e um punhado de outras
histórias que voltam a tocar em tudo o que foi dito em algum dos capítulos
anteriores. Ou seja, Os Bruzundangas é um livro que vale muito a pena ser lido
por todos os brasileiros, principalmente aqueles que não desistem de sonhar com
um futuro possível e não se acostumam
“Com a falta de rumo brasileiro
E esse tom de
desespero” (1).
E para gerar apetite, deixo aqui
um taquinho de A POLÍTICA E OS POLÍTICOS DA BRUZUNGANDA:
“Com esse apoio forte, apoio que resiste
às revoluções, às mudanças de regime, eles tratam, no poder, não de atender as
necessidades da população, não de lhes resolver os problemas vitais, mas de
enriquecerem e firmarem a situação dos seus descendentes e colaterais.
Não há lá homem influente que não tenha,
pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político
influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos,
sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República.
No entanto, a terra vive na pobreza; os
latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas
as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a
cousa mais fácil desta vida.
Vive sugada; esfomeada, maltrapilha,
macilenta, amarela, para que, na sua capital, algumas centenas de parvos, com
títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios,
duplicados e triplicados, afora rendimentos que vêm de outra e qualquer origem,
empregando um grande palavreado de quem vai fazer milagres.
Um povo desses nunca fará um haro, para
obter terras.
A República dos Estados Unidos da
Bruzundanga tem o governo que merece. Não devemos estar a perder o latim com
semelhante gente; eu, porém, que me propus a estudar os seus usos e costumes,
tenho que ir até ao fim.”
(1) Trecho de Tempestade, Zélia Duncan.
Avaliação: Ótimo
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